O tempo sempre foi tema de preocupações tanto de homens e mulheres que vivem seu cotidiano sem muitas pretensões intelectuais, quanto de filósofos, artistas e cientistas que dele se ocupam como objeto de reflexões e pesquisas bastante sofisticadas… Aparentemente é algo único, que corre como um rio na mesma velocidade para todos os seres vivos, mas qualquer pessoa sente que, às vezes, ele parece correr, em velocidades diversas. Esperar por uma hora “a pessoa amada” pode parecer “uma eternidade”; enquanto isso, um idoso diz que os seus anos de juventude “passaram voando…”. Bergson [1] tratou filosoficamente essa antiga suspeita de que existem relógios internos aos indivíduos, e que, segundo esses relógios, o tempo não passa da mesma maneira que mostram os relógios – existe uma dimensão psicológica do tempo.
Romancistas escreveram obras seguindo ideias similares; as mais de 500 páginas de Ulisses, de James Joyce, contam um único dia do personagem Leopold Bloom. Em Orlando, de Virgínia Woolf, um nobre vive por três séculos e muda de sexo no transcorrer da história. Marcel Proust, na obra “Em busca do Tempo Perdido” mostrou o papel central da memória na concepção do tempo.
Em outra dimensão do conhecimento, quando tomam conhecimento da física de Einstein, as crianças surpreendem-se com afirmações desconcertantes, tais como o fato de que se um foguete viajasse pelo espaço em uma velocidade próxima à da luz, o tempo passaria de maneira diferente para a tripulação e para as pessoas que ficassem na Terra: enquanto os astronautas envelheceriam alguns anos, décadas se passariam na Terra… Na realidade, na velocidade da luz as próprias noções de passado e de futuro não teriam mais sentido. Desde Einstein sabemos tempo e o espaço não são entidades separadas.
Em uma perspectiva social o fluir do tempo também não se mostra uniforme. Um exemplo emblemático é oferecido no filme A Febre, da diretora Maya Da-rin, protagonizado por indígenas. Ele mostra como um indígena que se mudou para a cidade vivencia um conflito de identidade, visto que trabalha no enorme e tecnológico porto de Manaus, que representa a fronteira entre o capitalismo globalizado e a floresta profunda, em que está a sua aldeia de origem. O filme mostra como ele se insere em várias dimensões da realidade, desde os contatos familiares aos ambientes trabalho e diversos contextos urbanos, que se movimentam em velocidades completamente diferentes. A floresta não é a mesma para indígenas e para madeireiras. Como escreveu Schama, “a natureza não é algo anterior à cultura e independente da história de cada povo. Em cada árvore, cada rio, cada pedra, estão depositados séculos de memória”. [2]
Constatações como essas levam à compreensão de que são vários os caminhos do conhecimento apontando para o fato de que não existe um Tempo único, com ‘T’ maiúsculo, e que, na verdade, indivíduos e sociedades vivem, e sempre viveram, juntos ou afastados, em tempos desiguais.
Até bem pouco tempo (e essa expressão mostra bem como a desigualdade do tempo está presente nos discursos, pois pode significar duas dezenas de anos, dois anos, ou duas semanas) – isto é: antes do século XX, dois atletas chegariam empatados em uma corrida de 100 metros rasos se concluíssem o trajeto em “doze segundos”. Os cronômetros modernos permitem que esse terrível mal entendido seja evitado hoje o tempo pode ser medido em décimos, centésimos e milésimos de segundo… À medida em que o tempo pode ser fracionado em unidades cada vez menores, fica garantido que sempre será possível quebrar um recorde, ainda que o autor da façanha tenha feito o percurso em um trilionésimo de segundo a menos… Mas isso vai permitir que tanto ele quanto aqueles que vão torcer por ele fiquem felizes. E também, claro, os organizadores do evento, e os acionistas da marca que vai fabricar o par de tênis que ele vai calçar. O tempo, então, não é apenas desigual para indivíduos e sociedades; desiguais são também as formas para medi-lo, e existem implicações sociais e econômicas relacionadas às duas coisas.
Ao longo da história da humanidade a desigualdade do tempo foi sendo compreendida de diferentes formas. Lévi-Strauss referia-se a algumas sociedades como “frias”, orientadas pelo pensamento mítico; para esse tipo de sociedade, o tempo passava lentamente. Na realidade, ele referia-se à velocidade das mudanças sociais – os indígenas que estudou no Brasil seriam um bom exemplo, porque elas experimentavam mudanças, inclusive tecnológicas, mas o ritmo das inovações era bastante lento em comparação com o tempo dos conquistadores europeus. A recém-nascida Antropologia europeia passou então a tratar esses povos como “atrasados”, o que para muitas pessoas, até hoje, seria um sinal também de “atraso mental”. Mas é claro que até o final da Idade Média os povos situados ao norte da Europa também eram também assim, lentos, e tão “atrasados” que eram chamados de “bárbaros” pelos povos do Mediterrâneo.
Nessa perspectiva, é possível afirmar que houve uma mudança no relógio dos ‘bárbaros’ que ocupavam a região da Alemanha, porque os alemães que hoje propõem a “Economia 4.0”, de modo similar, podem tratar como “lentos” os gregos de hoje – gregos que construíram uma sofisticada civilização há 2500 anos, suporte do pensamento racional tão apreciado pelos alemães.
Na verdade, o relógio de um agricultor pode ser somente o sol que nasce e se põe todos os dias no mesmo horário em cada estação. A evolução dos relógios aconteceu à medida que a indústria e os meios de comunicação e transporte a ela associados passaram a permitir o trânsito de informações e mercadorias com mais rapidez. Assim, tanto as percepções individuais quanto a forma de medir o tempo foram sendo substancialmente alteradas. Os antigos ‘bárbaros’ têm hoje a pressa para a mudança que não tiveram durante séculos. Algumas considerações sobre essa inversão de expectativas e realidades quanto ao uso do tempo são, portanto, necessárias.
O tempo e a história econômica da sociedade ocidental
Desde a transição do feudalismo, com o nascimento das fábricas, e particularmente durante a Revolução Industrial, os proprietários de empresas (muito deles na Inglaterra) e os seus administradores passaram a perceber a importância de usar da melhor maneira aquilo que compravam dos operários que empregavam: o tempo de trabalho. Era apenas isso o que os empregados tinham para vender, e ainda hoje é o que qualquer trabalhador normalmente vende para seus patrões. (No caso da universidade, esse tempo comercializado recebe o nome de hora-aula, e, curiosamente, ela dura apenas 50 minutos). Do outro lado do Atlântico, um pouco mais tarde, descendentes rebeldes desses ingleses criaram um novo país, e proclamaram em voz alta o que não estava ainda claro para todos: tempo é dinheiro! Essa afirmação explicitou as bases para a competição entre indivíduos, empresas e nações no novo modo de produção que se instalou mundialmente, regido pelo “mercado” – o capitalismo.
Os Estados Unidos colocaram a palavra “produtividade” em prática, e ao longo do século XX, passaram a liderar o que, no início, foi uma corrida contra os europeus, e depois contra o Japão e outros ‘tigres asiáticos’. A China, ao longo desse período, não parecia ser um competidor que pudesse representar um problema, e, por isso, lutar para que ela deixasse de ser ‘comunista’ parecia correto para a nação americana. Ninguém esperava que a China, que esteve por milênios andando em baixa velocidade, começasse a acelerar a partir da década de 1970, e instituísse um novo padrão para a competição! O padrão da produtividade passou a ser ancorado em uma forma de utilização do tempo ainda mais frenética, e sem os limites conquistados pela classe trabalhadora ao longo dos séculos. Isso desencadeou no Ocidente uma corrida pela flexibilização das condições de trabalho e sua consequente precarização. Eis a estranha convivência do tempo da economia digital com o tempo do início da Revolução Industrial em tantos países.
Os instrumentos para medir o tempo de trabalho e os resultados esperados eram, na fábrica fordista, relógios e cronômetros – mas Frederick Taylor, no início do século XX, já suspeitava da impossibilidade de controlar totalmente o que faziam os trabalhadores durante o seu tempo no horário de trabalho e fora dele. Por isso afirmou categoricamente a necessidade de incluir um “relógio moral” na mente de cada indivíduo. Era preciso que os funcionários, espontaneamente, quisessem trabalhar com a máxima dedicação, e não se atrasassem! Uma vez associado esse ‘relógio moral interno’ à religião, estava pronta a base para uma sociedade em que a preguiça consolidou-se como um pecado, o ócio passou a ser considerado um delito na maior parte dos países europeus. A tecnologia assumiu definitivamente a função de extrair do tempo do trabalhador o máximo de resultados.
Hoje, um passo adiante, a tecnologia se espraia sobre o tempo livre dos indivíduos, possibilitando a sua transformação em seres que, de forma aparentemente ‘espontânea’, podem trabalhar para seus patrões durante todo o tempo em que não estão dormindo.
É preciso, no entanto, investigar se o tempo e a velocidade são, de fato, critérios adequados para explicar a posição dos países no dinâmico “ranking” do capitalismo. De fato, é possível dizer que a Argentina teve uma boa ‘largada’, mas fatores políticos fizeram com que ficasse para trás; ou que o Japão e a Coréia do Sul, ao contrário, largaram bem depois, mas que fatores culturais possibilitaram que rapidamente chegassem aos primeiros lugares; ou que o Brasil alterna períodos em que avança e recua, em ritmos variados.
Muitas pessoas sentem-se inclusive tentadas a usar essa metáfora para o comportamento dos indivíduos. No ideário liberal norte-americano a vida social é de fato um tipo de ‘corrida’; quem não alcança o sucesso econômico é um “loser” – um perdedor, um fracassado. Mesmo os críticos que denunciam que os indivíduos partem de lugares diferentes nessa corrida, parecem acreditar nessa imagem, afirmando que o problema é a ‘desigualdade na largada’. Aparentemente, se houvesse igualdade de oportunidades, como excelentes escolas públicas desde o ensino fundamental até a universidade, a corrida seria justa.
Por atraente que pareça essa metáfora, seu poder explicativo tem muitas restrições. A principal delas é o fato de que os participantes da disputa, além de largarem em momentos diferentes, com recursos diferentes, não correm em ‘raias separadas’… Ao contrário, indivíduos, grupos, culturas e países correm juntos, agrupando-se em blocos, impedindo a progressão de alguns, enquanto uns empurram outros para trás e, eventualmente, para a frente, segundo interesses momentâneos…
No mundo globalizado contemporâneo essa corrida desenfreada vai explicitando os tempos desiguais entre indivíduos, classes sociais, culturas e países. Para que a China acelerasse seu ritmo nos últimos 30 anos, operários chineses que fabricavam cobiçados ‘I-phones’ eram obrigados a trabalhar em péssimas condições, recebendo horríveis salários, de maneira similar ao que aconteceu na Europa nos séculos XVIII e XIX. Nos Estados Unidos, o contingente de indivíduos arrancado da África e comercializado como se fossem “coisas” teve que esperar até a década de 1960 para ter os seus direitos mínimos reconhecidos. O Brasil, como último país do mundo a acabar com a escravidão teve, nesse aspecto, conduta igualmente desprezível.
Contemporaneamente, os que celebram as possibilidades da inteligência artificial parecem esquecer que o Chat GPT necessita, para funcionar, de “rotuladores” – trabalhadores com os mesmos péssimos salários, recrutados no Peru e na Bolívia, entre outros países “atrasados” na corrida.
Em se tratando da compreensão do tempo relacionada às questões de gênero, mesmo em áreas onde os problemas deveriam ser menores, como ao trabalho das professoras universitárias, preconceitos e incompreensões persistem. Por exemplo, apesar de uma vitória recente no Brasil – a extensão de um ano ao período que abarca a produção científica das professoras para comprovação do desempenho acadêmico para o seu credenciamento no corpo docente de programas de pós-graduação, como medida que atenua o impacto da gestação na produção acadêmica – a equidade de gênero, particularmente em áreas específicas, como Ciências Exatas e Computação continua distante. Aparentemente, para as empresas, compreender a especificidade do tempo da gestação e do cuidado com os bebês é inserir na lógica do capitalismo algo terrível – não aproveitar para obtenção de lucro todo o tempo disponível de uma trabalhadora. Por isso empresas de tecnologia como Apple e Facebook[3] oferecem para suas funcionárias o congelamento de óvulos – pago pelas empresas. Para essas empresas, o tempo das suas funcionárias não é igual ao de outras mulheres: a gravidez pode esperar.
Resumindo: as desigualdades do tempo no capitalismo estão ancoradas no poder econômico de indivíduos, empresas e países, e nas desigualdades sociais – étnicas, de classe e de gênero. Dessa maneira, além de não haver uma linha de chegada na corrida para o sucesso econômico, a situação dos corredores é bastante desigual – e não apenas no momento da largada.
Outras formas de compreender o tempo e outras possibilidades de viver…
Os tempos são desiguais também em outras perspectivas, e entendê-las pode ser um auxílio para aqueles que acreditam que associar tempo ao dinheiro é uma péssima forma de lidar com ele.
Para uma criança, o tempo é uma imensidão, e o futuro, por isso, muito distante; como têm um passado muito escasso, seu tempo é, de maneira geral, o presente. Para alguém de 25 anos, fazer um investimento que vai render bons frutos dentro de 30 anos pode ser um excelente negócio – ele terá uma vida tranquila a partir dos 50 anos. Para alguém de 60 anos esse mesmo investimento pode ser muito ruim ou muito bom – se tem ou não tem filhos, por exemplo, trinta anos pode ser um tempo razoável, ou tempo demasiado.
Em termos culturais, brasileiros e europeus historicamente têm diferenças fundamentais na compreensão do tempo. Brasileiros que se atrasam para uma reunião serão criticados por europeus muito pontuais. Porque os brasileiros não se incomodam com atrasos de quinze minutos? Porque historicamente a cultura brasileira tem uma concepção sincrônica do tempo: fazemos outra coisa enquanto esperamos, e por isso a espera não é penosa, e pode até ser muito produtiva. Um europeu entende que o tempo programado para a reunião pertence a ela, e um atraso significa que a próxima atividade também ficará atrasada. É uma compreensão do tempo diacrônica – uma coisa acontece depois da outra. À medida em que o Brasil se torna um país mais integrado ao capitalismo contemporâneo, tendemos também a incorporar esse entendimento do tempo, e a não tolerar atrasos em reuniões. Mas a compreensão sincrônica também pode ser apropriada pelas empresas – se possibilita mais resultados, ou resultados mais rápidos. Ou seja: a lógica mais adequada do tempo é a lógica da sua utilidade para o capital. O tempo da cultura cede espaço ao tempo-dinheiro.
Enquanto isso, na vida cotidiana, o trabalho ocupa a maior parte do dia das pessoas; deslocar-se para o local de trabalho, alimentar-se para continuar vivo, e descansar para o dia seguinte ocupa quase todo o tempo restante… E o que as pessoas fazem com o tempo que têm disponível? O filósofo francês fez Jean Pierre Dupuy[4], em um livro precursor, que atualizou a discussão ecológica no Brasil, apresentou surpreendentes resultados de pesquisas – por exemplo, cidadãos dos EUA queriam chegar mais rapidamente em casa para ficar mais tempo em frente à televisão. (Ou isso não é uma surpresa?) Mostrou os estudos de uma comissão que estudava a viabilidade da construção de um novo aeroporto. O tempo tem um valor econômico, e o seu valor é a sua capacidade de contribuição para a riqueza nacional. Assim, à hora do passageiro aéreo foi atribuído um valor cinco vezes superior à hora da mãe de família que desafortunadamente mora no local de construção do aeroporto. Para os economistas o valor do tempo varia segundo as categorias sociais.
Da mesma forma o tempo de ócio passa a ser também um tempo ocupado pela indústria – a indústria cultural, do entretenimento e as redes sociais. É preciso conhecê-lo para controlá-lo, e assim conseguir reter a atenção do espectador ou usuário o máximo de tempo, em cada webpage ou aplicativo onde possa ser alvo das ações mercadológicas.
É comum ouvir dizer que as pessoas mais felizes hoje são as que têm mais tempo disponível, e não as que têm mais dinheiro. Mas é digno de nota que as pessoas que anseiam pela aposentadoria ao mesmo tempo parecem ter horror a não ter um trabalho quando chegar esse momento… Ficar à toa seria uma maldição?
Os relatos de campo dos antropólogos que descrevem o cotidiano dos indígenas do Brasil mostram uma realidade que os fizeram ser considerados “preguiçosos” pelos portugueses – basicamente pela falta de desejo na acumulação que marca o capitalismo. É claro que há uma grande diversidade de culturas indígenas e igualmente uma pluralidade de abordagens antropológicas que eventualmente priorizam ‘respostas adaptativas’, ou ‘características socioculturais positivas intrínsecas’, entre muitas outras, como apontou Viveiros de Castro[5]. Mas os estudos etnográficos tendem a afirmar algumas situações cotidianas, quanto à vida na aldeia: de maneira geral, quando não estão caçando, pescando, ou em atividades agrícolas, a maior parte do tempo os integrantes das tribos ficam sem fazer nada, deitados, conversando, brincando, ou se dedicando a alguma atividade de artesanato. Mas mesmo as atividades de subsistência e o artesanato artesanal não são executados da forma como a sociedade ocidental percebe o trabalho: não há uma preocupação central em “maximizar o uso do tempo”, “otimizar os recursos” e “aumentar a produtividade” – não há “administração científica”. Como escreveu Melatti[6], não existe especialização profissional, e por isso, não existe divisão técnica do trabalho; a economia é de subsistência, e por isso não há pressão para o aumento da produção ou do consumo. O tempo livre não tem uso econômico.
A simpatia que muitos ocidentais têm pela vida nas sociedades indígenas está em grande parte amparada não na ausência da tecnologia, uma vez que nós a adoramos. Hoje em dia é crescente a percepção de que os excessos dessa tecnologia na verdade estão consumindo o nosso tempo e dificultando relacionamentos mais autênticos, além dos problemas ambientais que se tornaram o pesadelo atual. Não é difícil vislumbrar nas sociedades indígenas a integração com a natureza que perdemos, e em sua compreensão do tempo uma forma mais humana e mais natural de utilizá-lo.
O movimento ‘hippie’ dos anos de 1960 e 1970 foi basicamente uma recusa simultânea da forma de trabalho das empresas daquela época e do tipo de sociedade que elas promoviam – incluindo exploração, injustiça social, guerras e afastamento da natureza. Os jovens da época queriam o tempo da vida para eles mesmos – não queriam entregá-lo para empresas. Mesmo que a tentativa de colocar essa ideia em prática tenha sido utópica, o seu princípio é bastante razoável, na medida em que o lucro a qualquer custo pode um objetivo das empresas, mas certamente não é o objetivo da sociedade como um todo. Mesmo concordando que seja uma sociedade capitalista, deve haver limites que considerem o bem estar geral, e não apenas o lucro sem limite de uns poucos.
O mundo vive hoje um momento em que todas as questões acima mencionadas permanecem, como sempre, sem resolução. Embora a geração de riqueza econômica tenha alcançado níveis incomparáveis na história da humanidade, sua distribuição continua muitíssimo injusta. A desigualdade cresce em praticamente todos os países do mundo; o continente africano segue à margem, lembrado apenas quando suas riquezas podem ser indevidamente apropriadas; as guerras entre países, como Rússia e Ucrânia, ou conflitos internos, como na Síria, persistem – e não há motivos plausíveis para crer que outros não surjam. Da mesma forma, embora as iniciativas de um capitalismo sustentável estejam aumentando, a crise ambiental associada à sociedade de consumo está longe de ser resolvida.
Alguns autores associam uma parte substancial desses problemas ao culto à velocidade que tomou de assalto a vida econômica e tem dominado as mais variadas dimensões da vida social – e são críticos em relação a esse culto. O sociólogo Carl Honoré escreveu um livro sobre o assunto: “Devagar’ – um manifesto que descreve as várias faces do movimento ‘slow’, parcialmente iniciado pelo ‘chef’ italiano Carlo Petrini, que lançou esse movimento na culinária chamando-o de ‘slow food’ – uma contraposição ao conceito de ‘fast food’ norte-americano, que representa na alimentação as tendências do taylorismo e do fordismo. James Gleick, um jornalista já havia escrito um outro livro sobre o mesmo tema: ‘Acelerado[7]’, alertando para a paradoxal forma com a qual a sociedade ocidental lida com o tempo: quanto mais lançamos mão de instrumentos e estratégias para economizá-lo, mais pressa passamos a ter. Segundo esse autor os cálculos de produtividade estão tão associados ao mundo contemporâneo que é difícil conceber uma psicologia do trabalho que os omitisse. O livro mostra curiosidades, como livros de culinária de 1950, que já ensinavam a economizar tempo na cozinha, e livros infantis ‘best sellers’, como “histórias de Natal em um minuto”. As duas obras descrevem e criticam o ritmo desumano que tomou conta da sociedade ocidental a partir do final do século XX.
Outro autor, o italiano Domenico de Masi escreveu, em uma perspectiva similar, sobre o ‘ócio criativo’ – a ideia de tornar simultaneamente mais produtivo e menos penoso o trabalho nas empresas pela criação de mais tempo livre para os funcionários fez muito sucesso, mas em grande parte dos casos não passou de uma boa ideia, ou foi apropriada na criação de ‘áreas de descompressão’, para criar algum tipo de alívio para profissionais que trabalham na fronteira do ‘burn out’.
A promessa da tecnologia de liberar a humanidade do trabalho cansativo, gerando mais bem estar e tempo livre não se concretizou, a não ser para uma minoria de pessoas, e em poucos países. Ao contrário, as pessoas, mesmo em sociedades mais abastadas, como Estados Unidos e Japão, trabalham cada vez mais; os transtornos mentais aumentam; as pessoas estão deprimidas ou ansiosas- e os problemas são tantos que a saúde tornou-se uma indústria muito lucrativa.
Tempo desiguais… O povo yanomami vive um tempo diferente das pessoas que fazem o garimpo nas suas terras. A indústria 4.0 convive com o trabalho análogo à escravidão em várias partes do mundo. Uma empresa da face mais moderna da economia digital, como a Amazon[8], recentemente reconheceu que seus empregados não usam os banheiros convencionais da empresa; precisam economizar tempo para atingir as suas metas, e por isso, utilizam garrafas de refrigerante como recipientes… É um triste exemplo do efeito que o senso de urgência criado pelo dogma de que ‘tempo é dinheiro’ na vida de pessoas comuns.
Na verdade, uma rápida revisão do passado da humanidade não permite nenhuma projeção muito otimista para o futuro; os momentos mais belos da história da civilização correspondem, em grande parte, à obra de artistas que morreram anônimos, jovens, pobres ou que enlouqueceram.
Essa constatação, obviamente, não é original, e certamente, não se trata de um consenso. Em grande medida não é pessimista, porque reconhece os muitos pontos positivos possibilitados pela ‘pressa da civilização’, e afirma que a possibilidade real de mudança no culto à velocidade, em direção a uma sociedade mais calma e, consequentemente, mais sustentável, mais justa e mais fraterna é real, ainda que não seja fácil.
A intenção, no entanto, neste momento, é focalizar o que está acontecendo com o nosso tempo – para onde foi; porque estão todos tão ocupados. Se a indagação é sobre “tempo livre”, é possível encontrar evidências no desenvolvimento tecnológico para um discurso otimista, mas essas evidências não podem servir apenas para embalar promessas para o futuro – esse tempo que não existe. O que está sendo atualmente proposto como ‘sociedade 5.0’ não pode enquadrar-se dentro dessa ordem de ideias, e é uma ideia que não pode ficar restrita para poucos, em poucos países. Mais que nunca, estamos agora todos juntos, no mesmo planeta.
Finalizando…
O filósofo e matemático Bertrand Russel nos parágrafos iniciais de um livro sobre o ócio assim escreveu: “Eu acho que se trabalha demais no mundo de hoje, que a crença nas virtudes do trabalho produz males sem conta e que nos modernos países industrializados é preciso lutar por algo totalmente diferente do que sempre se apregoou”.[9] Ele atualizava o que escreveu Paul Lafargue também na primeira página de um livro similar, um século antes: “Uma estranha loucura tomou cota das classes operárias nas nações onde reina a civilização capitalista. (…) Essa loucura é o amor pelo trabalho”[10].
O trabalho passou a consumir tanto o tempo dos indivíduos que esses manifestos voltaram a chamar a atenção de muitas pessoas em todo o mundo. Se a promessa da tecnologia era eliminar o trabalho penoso e gerar tempo livre para toda a humanidade, ela não foi cumprida – ao contrário. A organização econômica da sociedade contemporânea está roubando cada vez mais o tempo das pessoas, além de causar problemas ambientais e de saúde para as pessoas. Ao mesmo tempo, o espetacular aumento na geração de riqueza econômica não diminuiu as desigualdades sociais. Não importa o tamanho do bolo; o acesso a ele ainda é muito desigual. Agora torna-se mais visível essa outra desigualdade, entre tantas outras, históricas, que nunca desapareceram – a desigualdade de tempo. Os “millenials” bem sucedidos, com investimentos financeiros, já têm possibilidade para se aposentar aos 40 anos. Enquanto isso, um homem brasileiro médio terá que trabalhar por 40 anos para se aposentar com 100% da média dos salários que recebeu.
Para onde vamos? Mesmo que haja uma tendência para o achatamento do tempo, em direção a um tempo global, em uma sociedade global, é forçoso reconhecer que essa tendência embute, no seu percurso, tempos desiguais – para trabalhadores localizados em diferentes degraus da hierarquia da produção, para países em diferentes posições na corrida para o sucesso econômico, para comunidades e grupos étnicos que vivem à margem do capitalismo, e mesmo no nível individual, para indivíduos que procuram sua posição no mercado de trabalho existente. O senso de urgência colocado pelo capitalismo global transformou até mesmo a infância e a juventude, porque as necessidades de formação acadêmica entraram na agenda das as crianças e adolescentes. A competição do mercado de trabalho começa cada vez mais cedo, e o tempo da infância é paulatinamente absorvido por preocupações dessa natureza.
É preciso lembrar também que existem variados movimentos de resistência a esse achatamento e à globalização do tempo nesses moldes – nacionalismos, algumas religiões, como o islamismo, ativistas antiglobalização de diversos matizes – e inclusive recusas individuais. Essas resistências significam uma compreensão diversa do tempo, e o reconhecimento da possibilidade de diferentes formas de existência para sociedades e indivíduos. O livro de Ordine, a ‘Utilidade do Inútil'[11] , ao protestar contra a primazia do utilitarismo vulgar ao atribuirmos valor aos saberes, objetos e ideias caminha nessa direção. É na perspectiva aberta por essa obra que se pode reivindicar o ócio como um direito. Assim como a arte, é uma “inutilidade” extremamente importante, e não precisa ter uma utilidade prática ou uma função mercadológica para ter essa importância.
Essa edição da SCAP quer chamar a atenção para essa desejável diversidade no entendimento e utilização do tempo. Discutir ‘tempos desiguais’ é, em certa medida, questionar porque para uns o uso do tempo é adequado e agradável, e para outros, massacrante. A diversidade na compreensão e uso do tempo é uma pré-condição para que a sociedade permita que seus integrantes sejam indivíduos que tenham tempo livre em quantidade suficiente, e que possam usá-lo de maneira criativa, da maneira que bem entenderem, sem que esse tempo lhes seja roubado de forma velada pela organização econômica da sociedade – incluindo o uso do ‘big data’ e os algoritmos criados para aprisionar e manipular as individualidades.
A desigualdade do tempo deve existir também na perspectiva da diversidade cultural, uma vez que cada cultura compreende o tempo de forma particular, e faz com que os seus integrantes o utilizem de maneira específica, e não padronizada pelo rígido ordenamento do mercado. Se a globalização aponta para uma perda na diversidade cultural do planeta, essa discussão é importante também para inspirar as ações necessárias para que isso não continue a acontecer.
[1] BERGSON, H. Duração e Simultaneidade. São Paulo, Martins Fontes, 2006, e A Ideia de Tempo, são Paulo, UNESP, 2022.
[2] SCHAMA. S. Paisagem e Memória. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
[3] https://exame.com/negocios/facebook-e-apple-pagarao-funcionarias-que-congelarem-ovulos/
[4] DUPUY, Jean-Pierre. Introdução à Crítica da Ecologia Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980
[5] VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo, Cosac-Naify, 2011.
[6] MELATTI, J.C. Índios do Brasil. Ed. da Universidade de São Paulo, 2007.
[7] GLEICK, J. Acelerado. A Velocidade da vida moderna. Rio de Janeiro, campus, 2000.
[8] https://exame.com/tecnologia/amazon-reconhece-casos-de-funcionarios-urinando-em-garrafas/
[9] RUSSEL, B. A Economia do ócio. Rio de Janeiro, Sextante, 2002.
[10] LAFARGUE, P. O Direito à preguiça. São Paulo, UNESP, 2000.
[11] ORDINE, Nuccio. A Utilidade do Inútil. Rio de Janeiro, Zahar, 2016.