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As multidões perguntavam a João: ‘Que devemos fazer?’ João respondia: ‘Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!’ Foram também para o batismo cobradores de impostos, e perguntaram a João: ‘Mestre, que devemos fazer?’ João respondeu: ‘Não cobreis mais do que foi estabelecido.’ Havia também soldados que perguntavam: ‘E nós, que devemos fazer?’ João respondia: ‘Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!’ O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias. Por isso, João declarou a todos: ‘Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga.’ E ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova. (Lc 3, 10-18)
Todos os anos, entre nós e o Natal, a festa da delicadeza de Deus para com o mundo, aparece este homem: João Batista. Em todas as variantes dos quatro evangelhos, algo é permanente: João é uma figura impressionante. Como uma luz que acende, brilha e se apaga (Jo 5, 35), como um raio, essa explosão descomunal de energia, assim foi sua passagem entre os homens.
Em sua aparência, uma figura assustadora. Possivelmente um nasireu (Num 6,1-4), seus cabelos são longos e incultivados, sua alimentação grosseira e frugal, suas vestes escassas e rudes (Mt 3,4). Sua morada é o deserto (Mt 3,1), bem longe de tudo aquilo que compõe a civilização e a civilidade. Sim, o deserto, pois se isso que temos diante dos olhos for a civilização e aquilo que percebemos for a civilidade, é mesmo melhor abandoná-las e começar, do nada e do deserto, um novo tempo.
Quem sabe, se reconduzidos, outra vez, ao deserto e aí, no vazio de todas as suas pretensas seguranças, voltassem para Deus o seu olhar. Quem sabe…. Talvez no deserto, os homens sintam, outra vez, sede e fome e frio e reaprendam quão sagrada é a vida. Talvez, no deserto, experimentem a miséria e redescubram a misericórdia. Talvez, no deserto, por quase nada terem, despertem-se para a gratidão do que lhes for dado e compreendam o que significa a solidariedade. Ou talvez um novo mergulho em Deus que nos lavasse de todos turbamentos e cansaços, restaurando forças e ânimo.
E assim faz João Batista. Das bordas do deserto, ele grita. Arrepiantes, como o frio do deserto à meia noite, são os seus presságios: Raça de víboras. Parai de dizer que sois filhos de Abraão e que escapareis da ira de Deus. Convertei-vos e produzi frutos de justiça. Pois o machado já está colocado na raiz de toda árvore estéril. E ela será cortada e lançada no fogo (Mt 3, 7-10). Fulminante, como o calor do deserto ao meio dia, o ardor de seus apelos: Praticai a justiça. Quem tem o que comer, reparta seu alimento com aquele que está com fome. E observai a lei (Lc 3, 10-14).
E este homem que a todos impressionou pela intransigência de suas exigências e dureza de suas palavras, se bem olhado e entendido, nada tinha de radical. Simples, perturbadoramente simples é o seu apelo: Quem tem duas túnicas, dê uma a quem não tem. A metade. Apenas isso. A metade e este nosso mundo seria irreconhecivelmente outro.
Assim simples são as exigências da Voz que clama no deserto. Apenas a prática da justiça, pela qual a cada um fosse devolvido o que é seu, por direito humano e divino. Apenas isso, mas imediatamente… sem escusas, sem esconderijos, sem álibis, sem tortuosidades, sem retardos, sem postergações.
Imaginemos agora, por um instante, como haveria de ser este mundo, se os apelos deste Homem de Deus se tornassem realidade. Se os caminhos entre os homens deixassem de ser assim tão escabrosos, tortuosos, curvos, repletos de outeiros e valas. Se os vales se aterrassem, de sorte que ninguém mais precisasse estar só, no abismo de sua solidão. Se os montes e as montanhas de tudo que nos separa se nivelassem, de tal modo que nada mais se interpusesse entre os homens, impedindo-os de verem-se face a face e darem-se as mãos.
Esta era a inflamada visão do Eremita do Jordão. Tudo isso pareceu-lhe tão próximo, tão possível, tão simples e, por isso mesmo, tão realizável. E, no entanto, dois mil anos depois, temos que constatar: o simples, o mais simples, nós ainda não o realizamos. E a questão central tornou-se apenas mais grave: Como despertar-nos para um novo começo, dois mil anos depois? Como transformar pedras ou corações petrificados em filhos de Abraão? Um novo espírito? Mas como provocá-lo? O que fazer para que nossa vida e este nosso mundo sejam um lugar em que nos sintamos próximos de Deus e Deus esteja conosco?
O Cristianismo, desde suas origens, não vê, para isto, outro caminho senão aquele apontado por João, “a voz que grita no deserto”. Para uns, apenas um eremita irritado com os homens ou um caniço agitado pelo vento, para Jesus de Nazaré, o maior de todos os homens nascidos de mulher (Lc. 7, 28).
Frei Prudente Nery – OFMCap.