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No décimo quinto ano do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão Filipe, as regiões da Ituréia e Traconítide, e Lisânias a Abilene; quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes, foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto. E ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados, como está escrito no Livro das palavras do profeta Isaías: ‘Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas. Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas; as passagens tortuosas ficarão retas e os caminhos acidentados serão aplainados. E todas as pessoas verão a salvação de Deus”. (Lc 3, 1-6 )
No deserto. Este era o seu lugar, como, aliás, o de muitos outros homens de Deus. A paisagem árida, de umas poucas árvores retorcidas, cujas folhas, em séculos de evolução e tentativa de sobrevivência nas estepes, se fecharam e transformaram-se em espinhos, as dunas intermináveis, sob a cúpula de um céu sem fim e sem nuvens. A ausência de água, de sombra, de refrigério, sob o sol inclemente e as tempestades de areia, durante o dia. O desconforto do frio cortante e dos animais peçonhentos, nas noites. As privações. As provações. Mas também o lugar em que tudo se torna precioso, essencial e sagrado: o cantil de água, a sombra de uma palmeira, a tâmara, o alimento parco e ressequido que se leva, as estrelas que norteiam os passos. A humildade diante da vastidão do imenso vazio. E, por fim, a gratidão por cada dia que aí se sobrevive.
Ao deserto, no deserto, é o primeiro convite de João, o filho de Zacarias. Quem sabe aqui – esse era, por certo, seu pensamento – no fogo e no frio do deserto, em sua austeridade e penúria, longe de todas as aparentes seguranças da civilização, distante dos frívolos ritualismos religiosos, os homens aprendam a temperança, a fortaleza, a sobriedade, a constância e recuperem, assim, a simplicidade, a sensibilidade, a justeza, a solidariedade, a gratidão e voltem a ser homens de Deus (Zc 13, 9).
Avesso às delicadezas enervantes da civilização e da vazia polidez dos palácios (Mt 11,2-11), suas palavras são secas, simples, severas, ásperas, sem o torneamento dos receios, sem a curvatura das tolerâncias: Sejam aterrados todos os vales e abismos. Retos e planos façam-se todos os caminhos. Sejam retiradas, de imediato, as barreiras, a fim de que, pela retidão de nossos caminhos, Deus possa vir ao nosso encontro.
Assim simples como o deserto são os apelos de João. Assim essenciais, sem acúmulos e supérfluos, como os que habitam ou transitam no deserto, poderíamos ser, todos, enquanto atravessamos os montes e os vales dessa vida, como peregrinos da eternidade. Não é muito o que precisamos, afirma o Profeta das Savanas e ensinam-nos, por exemplo, os tuaregues, os filhos do deserto que habitam o norte da África, ou, como eles mesmos se chamam, os filhos da liberdade: Uma túnica apenas, um pouco de água, uns grânulos em forma de pão, uma provisão de tâmaras e frutas secas, a companhia dos irmãos de caravana, uma cavalgadura, a humildade, a perseverança e as estrelas do céu.
Um pouco apenas, apenas isto, era a firme convicção de João. A simplicidade, a firmeza, a retidão, a resistência, a correção, a justeza, a justiça, o necessário para todos e este mundo se transformaria: A areia esbraseada se converteria em regatos e a terra sedenta em mananciais de água; onde outrora viviam os chacais, cresceria a erva com canas e juntos. E ali haveria um caminho, caminho que se chamaria o caminho sagrado (Is 35, 7-8). E este é o caminho que preparar tanto queria João. Era seu incondicional desejo que os homens se lavassem de sua sordidez e injustiça, que, mais uma vez, atravessassem o dilúvio do julgamento divino (Gn 6-9), o batismo, e ressurgissem, do outro lado, como filhos de Abraão e não pedras (Lc 3, 8).
Mais não precisaríamos fazer, pensa João: Entre os montes e vales deste mundo, preparai uma trilha para Deus…. Que não sejam assim tão íngremes e estreitos e pedregosos os caminhos da justiça. Antes, a cada vez que afastardes um obstáculo para a justiça, sem demoras, a cada vez que recobrirdes um vale que distancia os homens, sem retardos, a cada vez que retirardes uma pedra para que ninguém nela tropece, sem protelações, a cada vez que fordes retos e corretos, sem desculpas nem mentiras, estareis preparando um caminho para que Deus venha e todos vejam a sua salvação.
Outro caminho não há, assim crê o Cristianismo, para o reencontro de Deus com os homens a não ser este anunciado pelo Profeta do Deserto. Ele não é Elias, não é o Messias, nem o Redentor, mas apenas a voz que, no deserto, indo à frente, aponta o caminho. Por isso a tradição cristã ocidental, sempre de novo, o coloca entre nós e o Natal, a festa da vinda de Deus ao mundo. Por isso, igualmente, na tradição cristã oriental, ele foi colocado à esquerda de Jesus Cristo, como um anjo alado, o último dos mensageiros de Deus a indicar-nos, para sempre, os caminhos dos homens ao encontro de Deus.
Frei Prudente Nery – OFMCap.